Entre o real e o imaginário
De suspense italiano à metalinguagem de Woody Allen, passando por mistério argentino, Scorsese e docuficção nacional — descubra cinco filmes que merecem rodar no seu "videocassete".
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Prelúdio para matar
Um filme extremamente imaginativo no aspecto visual, aquele onde talvez Dario Argento mais tenha exercido a sua criatividade macabra. O roteiro, como sempre, desafia um pouco a lógica e nos convida a entrar em uma espécie de pesadelo, numa realidade meio distorcida e repleta de um vermelho profundo, como está explícito no título original. E isso nos confunde e encanta.
Na trama, o pianista inglês Marcus Daly é testemunha do brutal assassinato de uma famosa médium, mas não é capaz de reconhecer o rosto do criminoso. Intrigado, ele decide investigar o crime com a ajuda da repórter Gianna Brezzi, mergulhando num submundo perigoso e correndo cada vez mais riscos à medida que se aproximam da verdade.
Onde assistir: Darkflix, Oldflix e Plex
Caminhos perigosos
Quando Martin Scorsese encontra Robert De Niro: a mágica acontece já no primeiro filme da parceria entre esses dois gigantes, em 1973. E ainda tem como bônus um Harvey Keitel inspirado em cena. Aqui, algumas das principais características da filmografia do diretor estão presentes. Como a criminalidade com foco nos pequenos delitos, por exemplo, na sobrevivência nas ruas. Os protagonistas não são gângsteres, mas querem ser, e isso os coloca em uma posição de vulnerabilidade, abertos às possibilidades que aquela vida oferece e, claro, precisando lidar com as consequências desse desejo.
Aliás, essa palavra, desejo, também é um ponto focal, mas no sentido sexual. Afinal, os dilemas relativos à moralidade cristã afloram. Por fim, o uso de cores, especialmente a vermelha, é utilizado à exaustão para expressar não só elementos clássicos, como violência e religião, como também a natureza dúbia dos personagens.
A trama, em si, mostra cotidiano de dois indivíduos no submundo dos guetos italianos de Nova York. Charlie (Harvey Keitel) trabalha com o tio mafioso, realizando cobranças. Já o seu melhor amigo, Johnny Boy (Robert De Niro), é um rapaz revoltado que vive se metendo em encrencas por causa de dívidas de jogos.
Onde assistir: Max, Apple TV (para alugar) e Prime Video (para alugar).
História do oculto
Na última transmissão de “60 Minutos Antes da Meia-Noite”, o programa jornalístico mais assistido da televisão, a estrela da noite é Adrián Marcato, que se prepara para desvendar supostos laços do presidente com o satanismo. O premiado longa argentino é ambientado nos anos 1980 e traz todo o medo e paranoia próprios da ditadura militar no país, com o horror como pano de fundo para essas questões políticas e sociais. O roteiro é aberto a interpretações e obriga o espectador a ficar digerindo e confabulando sobre o que acabou de assistir. Decididamente, tema e execução nos tiram da zona de conforto.
Onde assistir: Netflix
A rosa púrpura do Cairo
Fellini costumava dizer que preferia o “cinema-mentira”, pois este é sempre mais interessante do que a verdade, dos fatos em si. Nesse contexto, Woody Allen reflete - a partir de uma comédia doce, sensível e, por que não, melancólica - sobre o porquê de assistirmos filmes, de embarcarmos nessas fantasias, às vezes de modo tão visceral. É sobre a função primordial do cinema, sim. Mas também sobre a importância de sonhar. Assim, o diretor extrapola os limites da realidade para afirmar que precisamos da arte como precisamos de oxigênio. Alienação? Não. Sanidade. E se debruçar sobre isso pode ser encantador, como prova Allen.
Tudo se passa na Nova Jersey da época da Grande Depressão. Uma garçonete chamada Cecilia vai ao cinema para escapar de sua vida monótona e se supreende quando um dos personagens de seu filme favorito sai da tela e invade o mundo real. Mia Farrow traz uma interpretação carregada de lirismo, enquanto Jeff Daniels, em papel duplo, revela o melhor e o pior do ser humano.
Onde assistir: Prime Video e Apple TV
Jogo de cena
A partir de um anúncio de jornal, mulheres comuns contam suas histórias de vida ao diretor Eduardo Coutinho. Mas algumas delas são reencenadas por atrizes, tornando a barreira entre realidade e ficção praticamente inexistente. E nesse aspecto reside a genialidade do documentarista brasileiro, pois ele testa não só o nosso discernimento cinematográfico como também a nossa capacidade de demonstrar empatia, de se reconhecer no outro.
Além disso, põe em questão o próprio trabalho, olhando criticamente para a busca da verdade como algo inalcançável por natureza. Afinal, a naturalidade pode se perder no meio do processo de filmagem de um documentário e uma versão não tão fidedigna pode surgir nos depoimentos. É do jogo, é da humanidade. Não é por acaso que as gravações ocorreram em um teatro. “O mundo é um palco e todos nós somos atores”, já dizia Shakespeare.
Onde assistir: Globoplay e Netflix
Rebobine, por favor!
Do papel para a tela: confira abaixo um texto direto da coluna no jornal Diário do Pará.
“Quando éramos bruxas”, um conto poético e macabro
O trabalho dos irmãos Grimm, Jacob e Wilhelm, em preservar e divulgar narrativas orais e escritas da história cultural alemã no século XIX, ganhou notoriedade com o passar do tempo a partir de versões romantizadas e adaptadas para crianças. Isso acabou escondendo o lado sombrio de muitos de seus contos, carregados de violência e crueldade, e inseridos em uma complexa teia de acontecimentos que, por meio da fábula, da fantasia, traça um recorte da época. “Quando éramos bruxas”, adaptação de “A amoreira”, segue essa linha mais próxima do original, em um filme contemplativo, poético, macabro e com extrema força imagética.
Dirigido por Nietzchka Keene, essa produção islandesa, gravada em 1986 e lançada quatro anos depois, nos transporta para o período medieval para acompanhar a saga das irmãs Margit e Katla. Elas partem em busca de refúgio após a mãe ser apedrejada e queimada na fogueira por bruxaria. Katla, a mais velha, seduz o viúvo Johan e passa a viver com ele e com o seu filho pequeno, Jonas. Contudo, o garoto não aceita a madrasta, percebe a sua real natureza e faz de tudo para afastá-la do pai. Enquanto isso, Margit tenta compreender, além dos seus poderes, o seu lugar no mundo.
A fotografia em preto e branco é poderosa e praticamente conduz a trama. Sem ela o filme não existiria, pois é a principal responsável pelo tom pausado, pelo ritmo lento e claustrofóbico como forma de retratar a tristeza dos personagens, o luto e a melancolia. Essa característica ecoa o cinema de Ingmar Bergman, claramente uma forte influência na cinematografia escandinava - e mundial, claro. Assim, “Quando éramos bruxas” apresenta um viés existencialista que é uma constante na obra do cineasta sueco, com o filme de Keene sendo impulsionado pela obscuridade do conto em que é inspirado.
Minha mãe me matou.
Meu pai me comeu.
Minha irmã Marleninha
meus ossos juntou.
Num lenço de seda os amarrou.
debaixo da amoreira os ocultou.
Piu, piu, que lindo pássaro sou!
Trecho do conto “A amoreira”, dos Irmãos Grimm
É importante entender que Katla e Margit estão unidas pelo sangue e pela herança ancestral da feitiçaria, mas não poderiam ser mais diferentes entre si. Enquanto Katla revela o peso da idade a partir de um instinto de sobrevivência aguçado, calcado no pragmatismo, nas suas certezas e na praticidade com que comanda seus atos, Margit é o exato oposto. A jovem permite-se ter dúvidas, quem sabe até renegar a bruxaria. Ela tem um dom, visões que não consegue controlar, enxergar aqueles que já se foram. Mas isso não a define. Margit quer apenas ser livre, viver em paz, longe da opressão religiosa. Embora essa seja uma tensão permanente e inevitável naquele contexto. De todo modo, ambas exercem - ou desejam exercer - o controle sobre as suas histórias. Não à toa, o filme é considerado uma releitura feminista do conto dos Grimm.
Além disso, seja pela expressividade ou pela economia de gestos e impassividade diante das situações, o elenco enxuto, de somente cinco membros, é cativante, tendo nos intérpretes de Jonas e Margit seus grandes destaques. Geirlaug Sunna Þormar é uma potência. Demonstra inocência e revolta na mesma medida. E uma jovem Björk, estreando no mundo artístico, captura nossa atenção por meio da sua aparente fragilidade, que encobre uma força de vontade estupenda.
“Quando éramos bruxas”, mesmo tendo apenas 79 minutos de duração, não é palatável para todos os públicos. Em especial a quem está acostumado ao ritmo acelerado do cinema atual - hollywoodiano acima de tudo. Talvez precisasse de um melhor acabamento, é verdade. Em algumas cenas há o flerte com um experimentalismo que pode, sim, incomodar, já que fica no limiar - ultrapassando este limite por vezes - entre quebrar o ritmo e servir à proposta de simplesmente contemplar o que a vida oferece. Sejam respiros por meio de paisagens e planos abertos para contrastar com o mundo fechado da cabana em que vivem os personagens; ou elevar esse nível da angústia, expressa pela morbidez de cenas-chave, como uma aparição fantasmagórica, um animal morto ou um dedo cortado como ingrediente de um ensopado para o jantar.
A tragédia, definitivamente, mora nas sutilezas.
Onde assistir: Filmicca
Por hoje é só, pessoal. Boa sessão e até a próxima!